Não, não aprendemos. Nem como empresa, nem como consumidores
Entre acontecer e se tornar público, o espancamento da vira-lata Manchinha nas dependências de uma enorme rede francesa de supermercados completa dois anos.
O algoritmo das mídias sociais me bombardeou com dezenas de lembranças – como se fosse possível esquecer.
Mas esquecemos, não é?
Começamos a esquecer quando uma matéria do jornal El País, publicada logo após o crime, alegou uma suposta repercussão exacerbada do caso, comparando – de forma previsivelmente mediana – a mobilização por Manchinha com o número de crianças baleadas dentro de casa, afirmando que nos faltava autocrítica.
À época, escrevi o que incansavelmente defendo: lutar pelos animais não exclui se importar com as pessoas. E sugeri ao jornal que, ao invés de fazer uma matéria sobre quem estava sob os holofotes nacionais, escrevesse sobre o aumento do número de crianças baleadas dentro de casa. Porque, sabe como é, né, às vezes, falta autocrítica.
Com as lembranças dos textos que escrevi, vieram também os ataques diretos – o algoritmo não perdoa. Xingamentos não eram nada perto dos comentários que eu não tinha capacidade intelectual para responder, como “se você defende um vira-lata, você é favor do aborto” (?), além de ser acusada de não me preocupar com as pessoas que perderiam seus empregos caso o lucro da rede fosse comprometido.
Bom, eu realmente não desejo para ninguém trabalhar em uma empresa onde um colaborador parceiro morre no meio do expediente e seu corpo é coberto por guarda-sóis para o local não parar de funcionar.
E João? Que ele também não seja esquecido na primeira promoção de panetone, a sete palmos do superficialismo profundo em que nós, seres humanos, nos enfiamos – a gente grita que se importa, mas vamos dar só um pulinho ali no supermercado que espancou um cachorro até a morte, escondeu o corpo de um representante de vendas e assassinou um homem no estacionamento.
Desde 08 de dezembro de 2018, nunca mais entrei em uma unidade da rede. Para não ser leviana, o fiz na Argentina, quando fui visitar o ex-zoo de Buenos Aires, ganhei uma sacola linda da marca e a enviei para reciclagem assim que pisei no Brasil. E com a sensação de que, embora a administração seja diferente, nem na loja de lá eu deveria ter ido. Temos opções – inclusive com melhores promoções de panetone.
Dois anos e tudo depois, que a gente realmente aprenda. Aprenda a não consumir aquilo que não nos representa. Porque capacidade autocrítica nós temos. O que a gente não tem mesmo é memória.
Foto: print da matéria publicada no jornal A Folha de São Paulo em 04 de novembro de 2019, com filtro avermelhado.