Chorei compulsivamente naquele dia.
Eu tinha 14 anos. Estava na casa de uma tia com meus pais. Ela abriu o freezer e disse à minha mãe:
– Olha o que eu comprei pro Natal, uma leitoinha!
A empatia pela causa animal já se manifestava dentro de mim de algumas formas – como quando eu tentava explicar pro meu avô, sem sucesso, que ele não precisava me presentear com outro passarinho na gaiola. Mas eu não tinha insumo pra debater. Morria um, ele me dava outro. E foi assim até o dia em que ele morreu.
Mas, só depois de mais velha, tive contato com a realidade da indústria da carne por meio de textos, reflexões e filmes. Mas nada, nenhum depoimento ou imagem me chocou tanto quanto aquele bebê morto no freezer da minha tia.
Naquele Natal, ela levou a leitoa pra ceia na casa dos meus pais. Morta. Assada. Inteira.
Foi quando parei de comer carne de porco.
No ano seguinte, expliquei aos meus pais que, por algum motivo que eu não sabia explicar, eu achava que comer aquilo era errado. E pedi pra que, se eles quisessem que o Natal fosse assim, a ceia fosse feita na casa de outra pessoa. Porque eu não queria mais porcos mortos na minha casa.
E quem acha que o problema foi tirar a leitoa da ceia é porque não enfrentou a minha bisavó italiana quando eu pedi pra tirar a carne de porco do recheio do capelletti caseiro que ela fazia do mesmo jeito há mais de 70 anos – ela viveu 96.
Ninguém levou porco no Natal seguinte. Depois, o peru também virou comida non grata. Mais pra frente, nem o Chester era bem-quisto.
Hoje, mais de 20 anos depois, não temos carne no Natal (nem uva passa, só pra constar).
Nossa, mas vinte anos? Isso aí. É assim que o mundo fora do umbigo do ativismo funciona. Do mesmo ativismo que, se um dia eu tiver a chance de aplicar com o aluno de seis anos de idade da comunidade carente onde a minha mãe é professora, que vai pra escola nesse frio com o chinelo número 38 do irmão mais velho e torce pra mãe ter o dinheiro pra comprar o pão da noite, qual deve ser o meu discurso? Não coma a mistura da escola, porque ela ainda não é vegana? Acho admirável as crianças que já nascem ou se tornam muito cedo convictas de que os animais não estão aqui pra nos servir. Do contrário, barriga com fome não ouve ninguém.
Ah, mas então, não tem jeito? Claro que tem. Meu papel de ativista é alinhar o discurso de acordo com a realidade daquela pessoa e não apontar o dedo pra cara dela como se eu fosse a mais evoluída do universo porque uso pomada pra assadura cruelty free no meu filho.
Mas é por causa das pessoas que comem carne que inúmeros animais estão há mais de 50 horas sem água e sem comida na greve dos caminhoneiros, não é?
Não.
A culpa também é minha. E, se você é daqueles ativistas que costumam esculhambar outros ativistas que lutam pelo abate humanitário, idem.
Sabia que, de acordo com as regras do abate humanitário praticado na Inglaterra, por exemplo, os animais de corte devem ser abatidos no local ou a uma curta distância de onde são criados?
“Mas abate é abate!”
Bom, se essas regras fossem aplicadas aqui, no Brasil, não poderíamos exportar carga viva. Ou seja, bois vivos nunca passariam três meses num inferno que o dicionário chama de navio.
Entre a insensibilização antes do abate e as técnicas de manejo, o que mais o abate humanitário abrange? A maneira com que os animais são transportados de um lugar pra outro. E não é que é bem o que está acontecendo por aqui? Animais há mais de 50 horas sem água e sem comida, em meio a uma greve necessária, passando por um sofrimento desnecessário.
Eu não sei se o abate humanitário é a solução até que uma nova consciência se expanda.
Mas, desde aquele dia fatídico em frente ao freezer da minha tia, de uma coisa eu tenho certeza:
Chorar faz bem, mas não adianta.